sábado, 10 de julho de 2010

A ideia negativa da homossexualidade não foi criada pelos cristãos.

Com o atual debate em torno da homossexualidade, é importante retroceder e fazer alguns questionamentos básicos. Como existe uma defesa em torno da ideia que a prática homoafetiva sempre foi vista com bons olhos e permissividade, publico aqui um resumo do livro História da Sexualidade Vol. 2: O uso dos prazeres. Em que o filósofo homossexual Michel Foucault faz uma análise sobre o uso dos prazeres entre os gregos, principalmente o sexual. Foucault inicia uma discussão sobre a origem dos princípios ditos cristãos a respeito da sexualidade. Retorna aos gregos a fim de encontrar neles o inicio de uma austeridade quanto aos prazeres, principalmente ao sexo. Foucault questiona a veracidade da separação radical entre moral sexual pagã e cristã. O cristianismo associa o sexo ao “mal, ao pecado, à queda, à morte, ao passo que a Antiguidade o teria dotado de significações positivas.”[1] No entanto, isto não é exato, diz Foucault, e passa a mostrar que desde os gregos existia uma moral a respeito do sexo, não como principio universal, mas como meio de ser uma pessoa mais virtuosa. Desde cedo havia nos gregos o medo do uso desregrado dos prazeres acarretando doenças, portanto, é mais favorável a abstinência e a virgindade do que a atividade sexual, mesmo que a própria masturbação. Outro fator é o grande valor comportamental que há na fidelidade, e na monogamia. Foucault cita alguns escritores gregos que tem admiração por aqueles que como o Elefante, mantêm por toda a vida uma única parceira. A imagem também é importante para os gregos, pois a jeito efeminado, delicado e invertido do homossexual recebe um tom negativo, onde não há estímulo para os homens se assemelharem com as mulheres, nem em aspectos físicos e nem sexuais, em que na relação de mesmo sexo um dos homens é dominado. Foucault afirma:
Seria inexato ver aí uma condenação do amor pelos rapazes ou daquilo que, em geral, chamamos de relações homossexuais: entretanto, é necessário reconhecer aí o efeito de apreciações fortemente negativas a propósito de certos aspectos possíveis de relações entre homens, assim como uma viva repugnância a respeito de tudo que pudesse marcar uma renuncia voluntária aos prestígios e às marcas do papel viril.[2]
Por fim, o modelo de abstenção é fator que evidencia a moral sexual de maneira seminal nos gregos. O herói é capaz de se abster dos prazeres, consegue dominar-se e não cair nas tentações. Já há certo louvor para aqueles que conseguem manter-se afastados dos desejos (epithumia). No Banquete Sócrates é considerado sábio por estar sempre em volta de belos rapazes, mas por nunca ter com estes relações sexuais, e mesmo no caso de Alcebíades que muito tentou alcançar este tipo de relação com Sócrates, mas de nada valendo, já que este não cedeu as tentações.
Longe de querer asseverar uma moral sexual grega como norma fixa ou universal, Foucault analisa os textos e por meio deles extraí uma moral prática que constitui um processo complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo, assim, compromissos ou escapatórias. Segundo Foucault:
Uma ação não é moral somente em si mesma e na sua singularidade; ela o é também por sua inserção e pelo lugar que ocupa no conjunto de uma conduta; ela é um elemento e um aspecto desta conduta, e marca uma etapa em sua duração e um progresso eventual em sua continuidade.[3]
Foucault faz reflexões sobre a aphrodisia, termo que ele mantém no grego afirmando ser de difícil tradução, já que traz consigo a noção de “prazeres do amor”, “relações sexuais”, “atos da carne”, “volúpias” e etc. “Aphrodisia são atos, gestos, contatos, que proporcionam uma certa forma de prazer.”[4] Na moral cristã será defendido a luta contra os desejos, deve-se sempre desconfiar as manifestações daquilo que possa lembrar os atos prazerosos, pois é nesta lembrança que nasce o desejo. Semelhantemente para os gregos existem as diferenças entre o desejo, o ato e o prazer, mas estão fortemente associados uns aos outros, daí o temor cristão em desejar, para não agir, a fim de não ter prazer, para que não deseje. A diferença se estabelece que enquanto o cristão se preocupa com o ato em si, os gregos estavam preocupados nestes circulo vicioso, “a ontologia a que se refere essa ética do comportamento sexual não é, pelo menos em sua forma geral, uma ontologia da falta e do desejo; não é a de uma natureza fixando a norma dos atos; mas sim a de uma força que liga entre si, atos, prazeres e desejos. É essa relação dinâmica que constitui o que se poderia chamar o grão da experiência ética dos aphrodisia.”[5] Portanto, a questão não é tanto qual o tipo de prazer sexual, mas se ele é comedido, se há domínio sobre este prazer.
O uso dos prazeres está relacionado a usá-los como convém, e assim, surge a dúvida de como isto pode ser feito. Os gregos usam a palavra Chresis para designar o uso correto dos prazeres, e assim, a virtude. A questão não é tanto quais os prazeres ou os tipos, mas como usá-los prudentemente e com controle. Assim, há uma tripla estratégia para o (chresis aphrodision) uso dos prazeres: necessidade, momento e status. A moderação correta no uso dos prazeres é a necessidade, pois usar os prazeres quando não há necessidade mostra a fraqueza da alma, e portanto, a falta de virtude. Beber quando há sede, comer quando tem fome, e as relações sexuais quando os desejos se manifestam, e não criar desejos que vão além das necessidades. O momento oportuno (kairós) é o uso dos prazeres em momentos determinados, não muito jovem, mas nem muito velho, quando há disposição física e etc. buscando sempre a forma que melhor convier para o uso. Por fim o uso do status como estratégia, diz que quanto maior status se deseja maior também deverá ser a temperança e o controle sobre os desejos sexuais.
Os gregos não tentaram definir uma regra de conduta de maneira universal, por outro lado certos princípios são encontrados nas suas práticas comuns. No que diz respeito à dietética o uso comedido dos prazeres, com vistas ao exercício da temperança além do medo de doenças, e outros fatores já listados. Na economia a manutenção da monogamia, a fim de manter certa estrutura hierárquica próprias da casa. E assim, o homem deve ter domínio de si, no domínio que ele exerce sobre os outros. Na erótica o afastar-se dos rapazes, que na erótica platônica tem relações complexas entre o amor, a renuncia aos rapazes e o acesso a verdade. Portanto, apesar de não serem princípios fixos e universais, revelam aqueles de maior virtude e que são capazes de se conter, pois exercem poder sobre si mesmos e sobre os outros, e não são escravos de seus próprios desejos. O que percebemos é que o cristianismo não fundou a ideia negativa da prática homossexual, mas seguiu aquilo que sempre foi dado como natural entre as sociedades, o normal é que o homem domine a mulher, e assim exerça o papel ativo, e não que seja dominado por um outro homem numa situação passiva.


[1] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: O uso dos prazeres. Vol 2. 8ª Edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. pp 17.
[2] Idem, pp 22.
[3] Idem, pp 28.
[4] Idem, pp 39.
[5] Idem, pp 42.